TEXTO DE APRESENTAÇÃO – EXPOSIÇÃO TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO (2019)
Galeria de Arte Ibeu, Rio de Janeiro/RJ
Texto: Cesar Kiraly
1. Aquele tipo de imersão parecia impossível a olhos como os nossos. Olhos como os nossos? Sim, do tipo que buscam a transparência para encontrar a rua, a vida dos outros na superficialidade da passagem. O tipo que não suporta tanto o entorno, enquanto está silêncio. Além de ser de si sobre quem fala. Olhos em que os acontecimentos são motivados por interesses e nada é tudo isso, para o bem e para o mal. Aquele tipo de imersão lhes era possível, apesar de tudo.
2. O título Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo remete à obra do Manoel de Barros. Com ele Rick nos indica que há algo a se compreender no seu trabalho que pode ser atingido de modo incidental, ricocheteando no poeta. As afinidades são imediatas. Ambos privilegiam a expressão por um miúdo universo de partículas sem relevância evidente, ou pré-Manoel. A poesia repleta de sons curiosos e núpcias antinaturais entre animais e brisas, plantas e pessoas e Rick com suas casas à moda de ontem proliferadas em aquecimento afetivo, metamorfoseadas entre pássaros e quase pessoas. Ora, até aqui não há desvio, as analogias e influências são claras como o dia. Esse caminho fácil nos induz a comer a isca e acabar despistados. Manoel e Rick estão juntos no ínfimo, mas o ínfimo não é isso.
3. A recepção à poesia do Manoel de Barros é curiosa. Ela não recebe a atenção significativa e estável como as do Drummond e Bandeira, ou Eucanaã Ferraz e Marília Garcia, para dar exemplos vivos, mas transitou entre total escanteio, descobrimento entusiasmado, histeria e indiferença cínica pelos poetas. Isso permitiu a ele a independência de tipos obscuros como Lúcio Cardoso e Mario Peixoto, porém com ampla inserção, a partir de certo ponto. Sua poesia não só é lida, como influencia conceitualmente filósofos e artistas visuais, principalmente porque compõe uma densa poética de complementaridade entre significados infantis, loucura e formas de vida aproximadas à terra. Não se trata bem de uma literatura, se é que faz sentido, ecológica, mas da simbiose entre o corpo, a consciência, que se perde, e as coisas, nas quais se desmancha. Ele compõe um plano de pureza infantil no qual afetos, que teriam ficado para trás na urbanização, são passíveis, ainda, de ser encontrados em uma vida mais devagar e atenta aos detalhes, aos restos.
4. Se repararmos bem na dinâmica de Manoel e Rick nos ocorrerá que ela não é onírica, propriamente, nas associações que faz. Não se trata do mundo do sonho, em que imagens são antecipadas para que possamos nos acostumar emocionalmente com elas. Tenderíamos a dizer que os quadros são movidos segundo uma lógica esquizo, como diria o Deleuze. A pictorialidade está nas composições oníricas e nas esquizos, a primeira é sobretudo sobre a cor e a formação da imagem, a segunda, contudo, é sobre a gradação das repetições, pouco importando a novidade. Dificilmente se encontra poeta tão fiel aos seus círculos como o Manoel. O mesmo pode ser dito sobre o Bispo do Rosário, Leonilson, a partir de certo ponto e Pedro Moraleida. Esta individual é menos sobre procurar algo e mais sobre repetir um processo.
5. A dimensão mais ignorada da obra do Manoel, em virtude da ternura provocada pelos seres de sua fauna, é a fina extensão da crueldade a acontecimentos miúdos. O ínfimo é repleto de destruições e acoplamentos deformadores. E pouco ou nada sabemos deles porque somos hipnotizados pela histrionia dos eventos industriais e mecânicos em suas lidas aniquiladoras. A pequena, em beleza, nada deve à grande ruína. O resultado poético não elimina que se trata de encanto pela capacidade de resistência e de sobrevivência. Rick é atento a essa questão ao buscar proximidade com o Manoel. O Manoel do Rick é polimorfo.
6. As séries do bispo do Rosário são diário de uma tortura linda da qual não pôde escapar. Algo semelhante está nos efeitos das máquinas de costura da Diane Sbardelotto. Afinal, Manoel é sobre a devoração de caranguejos e marandovás pelas formigas, a ironia de aceitar ser chamado de imbecil como um elogio, sobre a loucura de se falar o idioma dos urubus e depois ser exilado a viver entre pessoas, ter um olhar distorcido, sobre a possibilidade das pedras deterem “rascunhos de pernas de grilos” e “asas esmigalhadinhas de borboletas” como origem do tingimento azul. Um modo de descrever esse procedimento é dito por Manoel e serve ao trabalho do Rick: “Meu requinte / é chegar à vilezas / com castidade.” A crueldade, pelo animismo, embeleza o mínimo.
7. Ao comparar a nossa realidade com a dos países europeus em carniçaria, Lobato dizia que não precisávamos invejá-los, primeiro, porque é melhor não ter guerras do que tê-las, pelo menos naquelas proporções, além de que a nossa maneira de nos divertir destruindo seria muito mais bonita. Ao invés de imensos desastres humanitários, a maldade, à época pelo menos, se pulverizaria mínima em eventos. Porque se o mal é menor em tamanho, ele se torna melhor em acabamento. Seria encontrado em quase tudo, não sem lírica, nas miudezas naturais e sociais. Na intensidade, provavelmente, não seríamos nem melhores e nem piores, mas, com certeza, mais minudenciosos em colocá-lo nas relações. Se esse mundo velho não existe mais, pelo menos é possível se compor com ele.
8. Não se costura impunemente. A costura, inclusive à máquina, é uma atividade menor. Mesmo se as costureiras são escondidas, como na produção industrial ou na alta costura, é sempre a costura que está em questão. Os cortes podem ser os mais variados, ela, mesmo sob exploração, insiste, para si ou para outrem, como tentativa de autonomia. É assim nos mantos do Bispo, nos parangolés do Oiticica, nas roupas torturadas da Diane e nos bordados do Rick. Ainda que não seja o ponto, a sutura é de gramática feminina, o início da um jeito de insistir. Deleuze disse Kafka autor de uma literatura menor, por usar um alemão parte cartorial e parte ídiche para reinventar a escritura moderna. Kafka é um suturador menor. É como Rick e seu bordado, compondo-se com as miudezas.
Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].