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TEXTO CURATORIAL – FIAR (2023)

Museu de Arte do Espírito Santo Dinísio Del Santo, Vitória/ES

Curadoria/Texto: Neusa Mendes

F I A R 

Olho para uma obra de Rick Rodrigues, estrategicamente, sentada no sofá de minha sala, pensando numa das práticas mais importantes desse incontornável artista: eurritmia. Seu conceito alude ao fato de se procurar a beleza em cada movimento como forma de expressar o seu estado de espírito, de forma que sentido e significado se fundem. Não foi meramente ocasional que ao observar uma obra de Rick, que mostra um passarinho bordado em linha azul numa redoma de tecido branco, capturado em pleno voo, tornou-se, neste momento, um acontecimento fulgente. O tempo que o artista dedica aos detalhes, às delicadezas, aos fragmentos, aos significantes, associado à qualidade da fatura, do artista, ressalta a essência das suas narrativas pormenorizadas, intimistas.

Com seus bordados, Rick tece insensatamente relatando os fatos do passado e anunciando o futuro. Revela, assim, os vestígios das coisas submersas e faz projeções permeadas de intencionalidades, tudo fecundado e revitalizado pelo gesto incisivo, sistemático e cíclico do ato de bordar. Tal atitude funciona como processo de construção de sentido, como uma suspensão do que não se contrapõe à precipitação, mas vislumbra-se no acesso ao silêncio.

 

Em seu processo criativo, dá-se a ver que a ocorrência de seus atos e a complexidade de sua poética são inerentes à temporalidade desse fazer minucioso, precioso e contínuo. É desse contexto tão persuasivo, silencioso e dinâmico, marcado por circunstâncias emocionais profundas e fecundas, que floresce toda a força, a sensibilidade para o mundo, para o outro e toda a reflexão existencial do artista. Conforme afirma Byung-Chul Han, esta quietude é o que distingue a visão estética da percepção simplesmente sensível. Na presença do belo, o ver chegou ao seu destino[1].

 

Desse modo, a poética de Rick nos conduz à experiência de duração, desencadeia a (re)descoberta do que a vida faz ou pode fazer para além ou aquém. A possibilidade de uma experiência estética produzida pelos arranjos e (re)arranjos é um intenso e detalhado diário de memórias, sensível e delicado.

 

Rick recupera a herança familiar do bordado; ata pontos extremamente mínimos, precisos e delicados, em diferentes suportes e materialidades, seguindo a natureza das linhas, de seu teor e de suas densidades próprias, colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas do estatuto das coisas. O artista entrega narrativas ora simples, ora complexas, as utiliza como aporte metodológico, o que  aponta para o entendimento de uma poética como possibilidade de mediação entre o vivido e o estabelecido ao outorgar o sujeito; potencializa autoria de discursos que os envolvem. Tudo isso constitui um agenciamento.

 

Seria, portanto, o processo da poética de Rick o resultado advindo de uma interlocução consigo próprio e com o mundo que desencadeia um ritual do que a vida tem de extraordinário?

 

O fato de nominar o agir como ortonímia, “artista-passarinho”[2], constitui-se de múltiplas dimensões.

 

Vai além da apreensão e da intensidade, inseparável entre a pressão e a velocidade de correntes fluidas – por referência, o advir de outros sentidos, do simbólico ao arquétipo. O artista-passarinho subscreve-se numa temporalidade em trânsito: entre o vivido e a possibilidade de trazer o sentido do sensível que é determinado pelos objetos e do inteligível; que convergem numa sinestesia particular que liga a agudeza à sabedoria. Artista-passarinho, uma criatura, uma força da ascensão libertária, da imposição de desejo seus e dos outros, move-se em silêncio.

 

É como se esse instante se dividisse em dois atos. O primeiro é o modo de absorver o deslumbramento produzido pela experiência estética e, então, fundar um sentido ético para a vida. Não se trata aqui de uma escapatória como fuga, mas um desejo de ir e vir, um modo de relacionar-me com toda a poética do artista e vislumbrar o belo em si[3].

 

A meu ver, esses apontamentos convergem para o segundo ato. A ideia de trânsito permite a Rick Rodrigues, por meio de sua poética, grafar a entrada de um “outro” sujeito nessa experiência: o artista-passarinho. Surge, assim, uma abordagem de autoria, de modo explícito, que sustenta o seu estatuto relacional. A tarefa de construção do sentido é a busca que nos reúne, atesta o esperançar, o deslumbramento, a singeleza dos pequenos acontecimentos. Ao fazê-lo, restaura a espera do indivisível, tocado pela possibilidade de tudo ressignificar. [...] só é possível pelo arrebatamento da paixão que os funde, provocando a fusão entre sujeito e objeto[4]. Por conseguinte, só é plausível pelo fato de o acontecimento estético conferir sentido e significado, modificando a nossa relação e nossos modos de existir no mundo.

 

É assim que as narrativas de Rick se põem em poética; é o lugar que gesta, recebe e incarna o acontecimento[5]; são construções que nascem de relação diametral oposta do regime estético ao teor em carne viva, aos abalos mais expressos. Nesse sentido, a obra do artista decanta-se, mantém-se igual a si próprio, numa relação livre com o mundo e consigo, e enquanto acontecimento deixa de ser produção individual, factual, evidencia a reconfiguração na tessitura de outras vidas, dos atravessamentos, em conjugação com os verbos recolher, curar e expor.

 

São esses, a propósito, os prefácios da exposição “Fiar”, que marca o retorno de Rick Rodrigues ao Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) dois anos após sua última mostra coletiva ali. Em sua nova mostra solo, o artista usa o o bordado como fio condutor e apresenta o encontro de obras que já viajaram por várias regiões, por galerias e museus brasileiros, com outros trabalhos inéditos elaborados desde que o período pandêmico rompeu a rotina de vida e pausou o mundo.

 

Também compõem a coleção de “Fiar” obras produzidas em oficinas, laboratórios, ateliês, cursos e encontros com diversas comunidades. São esses os modos de Rick comentar e estimular mudanças na ordem social vigente, com contribuições importantes para a coletividade; é essa a ótica pela qual o artista enxerga a transmissão de informações conectadas aos direitos humanos. Inter-relacionar coletividade e cultura: eis uns dos conceitos essenciais da arte-vida de Rick Rodrigues.

 

Com a mostra, o artista propõe para o espaço expositivo a demarcação da presença construindo uma obra capaz de expandir sua história pessoal de vida num jogo de identidade e suspensão do tempo. O resultado disso se revela em pequenos e inúmeros testemunhos universais sobre passado, experiência do instante, amor e laços familiares, os quais podem ser vistos por meio de pequenos objetos, eventualmente unidos por fios de novelos vermelhos, sinalizando implicações simbólicas.

 

Na obra de Rick Rodrigues há também a junção entre imagem e palavra. Pequenos fragmentos de palavras insistem em aparecer por debaixo dos desenhos: ora são decalcagens (estratégia que vem da gravura, interesse do artista), ora alguns desses elementos tridimensionam-se, saem do papel ou dos bordados, e pousam na parede criando narrativas enviesadas.

 

A paleta do artista ora é sóbria, de tons baixos, ora prima pelos fortes vermelhos, azuis, amarelos e pretos. Outras vezes, o branco domina toda a superfície, onde há delicadas intervenções por meio de objetos, traços, pontos ou linhas nas quais predomina a monocromia. Detalhes de azul e vermelho aparecem em pequenos desenhos e minúsculos objetos. São sapatos, caixas, globos, casinhas de passarinho, cidades, nuvens, caminhas, casinhas, cadeiras e tantos outros que se oferecem como uma mina de metáforas.

 

“É tudo muito reduzido. Eu gosto da estranheza que produz o objeto tridimensional junto do desenho, causa incômodo [...], uma pequena escada de madeira que não é possível aceder, casinhas, caixinhas, aviãozinho que trago da memória da minha infância”, conta Rick. Cortinas bordadas em tecido voil branco, propostas pelo artista também para “Fiar”, serão produzidas no museu enquanto a exposição estiver em visitação. Com isso, elas adquirem sentido espacial e significado elementar. Enigma de dimensão subjetiva e deslocamento.

 

É certo que a poética de Rick Rodrigues conduz nossos pensamentos e sentimentos circunscritos à geografia da cidade onde ele nasceu e ainda habita: João Neiva (ES), a 76 quilômetros da capital capixaba. Não abriu mão do trajeto nem mesmo quando cursou a graduação em Artes Plásticas e o mestrado em Artes, ambos na Universidade Federal do do Espírito Santo. Mas o artista explora novos lugares, reais ou imaginários, ao estabelecer cada uma de suas obras. Essa é sua forma de habitar e ser habitado.

 

Talvez convenha mostrar como a arte e a organização não só se harmonizam como também se aliam na poética de Rick. Elas atuam como formato, dando-lhe conteúdo, modos distintos de como as relações são estabelecidas: a sua moradia. O artista projetou e construi, literalmente, em companhia do irmão sua casa em sua cidade natal. Associá-la aos procedimentos geradores das suas criações é decisivo e consequência dos princípios de interpretação da obra do artista. Habitá-la é um fio condutor e movimento; por outro lado, com efeito, é repouso e pausa, é tranquilidade. Uma espécie de paisagem alimentada, averbada por ideias, que são portas de entrada para seus procedimentos cognitivos.

 

Ao explicar a dimensão do lugar constituído, o artista relata que tem a companhia de múltiplos diálogos e especificidades, modos de ver extraordinários, possíveis e excepcionais, do interior da sua morada. Nos seus arredores, o “cenário” é o da fábula: entrar na poética de Rick Rodrigues é como atravessar o espelho de Alice – eis aí o verdadeiro sentido das coisas.

Não é por acaso que o título da exposição nos leva ao encontro da mitologia grega do fio de Ariadne. Há, aí, a construção de dois tempos: passado e presente; memória e história. No jogo dessas possibilidades, diríamos, a jovem Ariadne encantou-se com o herói Teseu, a quem ajudou a vencer uma luta contra o Minotauro. A bela ofereceu a Teseu uma espada e um novelo de linha para sair do labirinto.

 

Aqui, o novelo usado por Rick nesta proposição se torna um indicador de caminhos. Esse processo pode assumir o método de um registro mental, uma marcação física: “Fiar” transforma-se em um símbolo de raciocínio lógico, que permite seguir completamente os vestígios das pistas ou assimilar, gradativa e seguidamente, a compreensão do tempo. É passaporte para uma reorganização simbólica – da espera à esperança.

[1] Han, Byung-Chul. A salvação do belo. Lisboa: Relógio D’Água, jun. 2016. p. 54.

[2] Rodrigues, Rick. “João Neiva/es (1988) – cria do cb, artista passarinho e mestre em artes”. Rick Rodrigues [site], [s.d].

[3] Han, 2016, p. 97.

[4] Teixeira, Lúcia. Da imperfeição: um marco nos estudos semióticos. Galáxia, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 257-261, nov. 2002. p. 259.

[5] Han, 2016, p. 97.

Neusa Mendes, artista, curadora e pesquisadora.

Inverno de 2023

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