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EXPOSIÇÃO CASA 34(2021) 

OÁ Galeria Arte Contemporânea (Vitória/ES)

Texto: Almerinda Lopes
 

 

ERA UMA VEZ UMA CASA DE NÚMERO 34

 

            A demolição dessa casa ocorrida em 2016 tornou-se, a partir de então, o estímulo gerador do projeto poético do jovem artista capixaba Rick Rodrigues, que a cada nova exposição apresenta ao espectador um jorro de imagens/referências das memórias desse ambiente topofílico. Essa casa de número 34, que se localizava no centro do pequeno município de João Neiva, interior do Espírito Santo, era para o artista o lugar dos sonhos e dos afetos, uma vez que ali residiu por muitos anos o casal Maria Roza e Esmeraldo Rodrigues, seus avós paternos, e onde Rick passou a infância e grande parte da juventude. Foi com grande emoção e impacto que o jovem se deparou com os escombros da casa avoenga numa de suas idas à terra natal, da qual se afastou temporariamente para estudar na capital. Depois de concluir os estudos, voltou a residir na cidade, onde também mantém ativo seu ateliê, o que torna muito presente a memória da casa, como se visse ali soterrada grande parte de sua história e memória afetiva. Como um arqueólogo, que remove a terra e as camadas do tempo em busca de recuperar o que sobrou do passado, para melhor conhecê-lo e preservá-lo, Rick iria revirar impulsiva e intuitivamente os escombros à procura de objetos, fotografias, documentos, e outros vestígios da memória da antiga residência e daqueles que a habitaram, referências essas que eram também significativas para sua própria existência.  À medida que remexia os escombros, as lembranças da vivência na casa surgiam como emanações, e a cada achado emergiam novos sentimentos e recordações de fatos, experiências, pessoas, afetos.

            Se o tempo produz apagamentos da memória e impossibilita criar um cenário completo desse lugar do idílio, o artista o reconstrói poética e imaginariamente por meio de desenhos, gravuras, bordados, objetos, instalações, fotografias e vídeos. As primeiras imagens poéticas da casa foram desenhos criados por Rick Rodrigues naquele mesmo ano, representando-a como o arquétipo de um ninho ou pombal. Consistia em um pequeno esquema geométrico, com telhado de duas águas e uma pequena abertura central, que servia tanto de janela como de porta, pois a casa que habitamos na infância é nosso ninho, útero, berço, esconderijo. Esse mesmo esquema arquetípico foi transposto para gravuras e para dobraduras de cartolina, idênticas, como cubos vazios, que o jovem artista apresentava uma ao lado da outra, lembrando um pombal ou um conjunto de casas de um núcleo habitacional, despojado de seus habitantes. Surgiram, depois, miniaturas do mobiliário e de outros objetos que existiram na casa ancestral: camas tipo patente, armários, cômodas, mesas, gramofone, confeccionados com tal perfeição que lembram pequenas relíquias. Remetem a brinquedos ou aos objetos do mundo do pequeno dos contos de fadas. O propósito do artista ao apresentar essas miniaturas dos móveis e objetos da casa é formalizar um jogo do faz de conta, entre realidade e ficção, invenção e imaginação, possível e impossível. Assim, as referências ao mobiliário aparecem agora posicionadas nos respectivos lugares originais sobre o desenho bordado da planta baixa da casa 34, desvelando, numa espécie de sobrevoo por uma superfície transparente, o interior da casa e os objetos que integravam cada um dos cômodos. As miniaturas de camas e de outros objetos eram anteriormente posicionadas no alto das paredes dos espaços expositivos, convidando o público a acessar paradoxalmente esses objetos aéreos por meio de frágeis escadas miniaturizadas, que não aguentariam o peso de uma aranha. Os armários tinham as gavetas abertas e vazias, remetendo ao esvaziamento e ao apagamento da vida na casa, uma vez que encontrar gavetas vazias seria inimaginável em um lugar habitado. Os paradoxos ou as incongruências também se revelam em outras imagens poéticas criadas pelo artista: as miniaturas das camas, às vezes, são instaladas sobre travesseiros bordados, num processo de inversão em que o travesseiro é maior que a própria cama. Todavia, como observa Bachelard (2008), as “imagens poéticas nos fazem viver fenomenologicamente o não vivido”, não mostram necessariamente um fato real, “são pura linguagem, pura invenção libertadora, pura imprevisibilidade”.

            Nessa visão topográfica da casa 34, a referência à cozinha é feita por pequenas prateleiras, nas quais estão penduradas miniaturas de panelas e outros utensílios que, embora remetam à memória da infância do artista, não deixam de aludir a brinquedos, assegurando-nos que se trata mais de imaginação do que de realidade, mais de devaneio que de lembrança. São topofilias; sinalizam que se trata do lugar da intimidade e dos afetos. No espaço da sala, a referência que marcou mais profundamente a memória do artista foi o retrato dos avós, pendurados no alto de uma das paredes, como se dali pudessem proteger e abençoar o neto. Entre as imagens poéticas que integram a exposição Casa 34, as silhuetas dos avós resumem por si só o afeto e o sentimento mais profundo que o neto lhes devota. Os retratos foram bordados sobre tecido branco de lençol e mantidos enfeixados pelas molduras originais, que Rick conseguiu resgatar e restaurar.

 

            Especialista em gravura, tanto por sua praxe criativa quanto por ser pesquisador, o artista tem se dedicado em seu projeto poético mais efetivamente a inventar cenas e cenários em que predominam os objetos miniaturizados e os delicados bordados. Estes são executados com linhas coloridas sobre fitas de cetim, fronhas, almofadas, lenços, sacolas plásticas, cartões antigos, fotografias e peneiras. Embora o artista relate a existência de bordadeiras em sua família, aprendeu a bordar observando o irmão mais velho a costurar pedaços de couro para a confecção de arreios e de outros utensílios necessários à lida diária no sítio familiar. Anos mais tarde, esses exercícios até então descompromissados, realizados com agulha e linha, seriam canalizados para a elaboração de suas imagens poéticas em forma de pássaros, árvores, flores, nomes de objetos e de pessoas, retratos, além da planta baixa e da fachada dessa mesma casa, adornada com delicados vasos de flores.  Não raramente, os bordados repetem inúmeras vezes um mesmo elemento visual, como os referidos vasos de flores ou uma simples sequência de flores estilizadas, numa referência ao jardim da avó e também ao quintal da casa, onde havia uma frondosa e imponente goiabeira, que servia de suporte ao balanço em que Rick Rodrigues e outras crianças da família brincavam. Mas, num exercício sinestésico, o artista diz ainda sentir o odor e o sabor das goiabas que colhia na árvore. É como se todas as lembranças da casa permanecessem enraizadas no inconsciente do jovem artista, em cujo projeto poético vai desvelando e apresentando aos seus potenciais interlocutores fragmentos dessa memória íntima a cada nova exposição que realiza. O diálogo com essas imagens despertará a consciência imaginante do interlocutor, fazendo com que ele rememore e evoque lembranças e vivências de sua própria história, porque é a vida que se revela nessas imagens em sua plenitude poética.

            Dois outros elementos merecem atenção especial na exposição do artista: uma gaiola de madeira, onde não há nenhum pássaro aprisionado, e a chave original da casa.  Dentro da gaiola, é possível desvelar miniaturas de louças e, principalmente, um emaranhado de fitas de cetim, sobre as quais é possível ler alguns nomes próprios e fragmentos de um texto, que embora não se desvele na íntegra ao espectador, foi inteiramente bordado pelo artista, juntamente com signos diversos evocados pelo teor da carta. O texto é o teor da correspondência enviada, em 1977, por uma prima da Espanha ao pai do artista, Paulo Rodrigues, falecido em 2010, sem que tivesse lido ou tomado conhecimento da existência dessa carta, enviada para a Casa 34, pois nunca fora entregue ao destinatário por quem a recebeu: um tio de Rick, que foi também o último ocupante da casa. Essa carta, ainda lacrada – escrita e postada muito antes da existência do próprio artista - foi recuperada e finalmente lida em 2014 pelo filho do destinatário, quando a casa foi desocupada. Ao bordar o conteúdo dessa missiva nas fitas de cetim e aprisioná-las na gaiola, de modo que o espectador só tenha acesso a fragmentos do texto, o artista não permite que a intimidade do outro, que permaneceu inviolada no envelope lacrado por quase quarenta anos, seja desvelada por inteiro. Nomeando a obra de Carta a quem não leu, Rick Rodrigues atenta tanto para os possíveis segredos que não possam ser revelados, pois só dizem respeito a quem deles deveria tomar conhecimento, como confirma que os limites da memória não têm começo nem fim, nem se manifestam por completo, sem interrupções ou apagamentos. Surgem como emanações tênues, nem sempre previsíveis ou organizadas, como incompletudes ou imagens informes, às quais o artista procura dar forma. A chave da casa remete simbolicamente ao sentido de posse, à possibilidade de adentrar a casa pelo devaneio e ali reencontrar tudo como era dantes, abraçar os entes queridos e sentir o aroma das flores e das goiabas, que reviverão para sempre não mais na casa destruída, mas na potência das imagens poéticas geradas por Rick Rodrigues.

 

Vitória, junho/2021

Almerinda Lopes

 

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