TEXTO CURATORIAL – EXPOSIÇÃO ALMOFADINHAS (2017)
Galeria GTO do Sesc Palladium, Belo Horizonte/MG
Texto: Ricardo Resendo
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OS ALMOFADINHAS. OS DANDIES. OS FLANEURS. OS ARTISTAS.
No mundo de hoje, há uma excessiva normatização das coisas, dos fatos, dos sentimentos e, consequentemente, o cerceamento à vida. É a era do homem eficiente e materialista dedicado integralmente ao trabalho. Nosso tempo é o das palavras de ordem e a máxima desse mundo de homens (machos velhos políticos, conservadores) que dominam a vida é, “não pense, trabalhe!”
A humanidade perde assim sua essência. Somos dotados de alma contemplativa, ociosa e reflexiva que nos leva para o devaneio, para a cultura, para a arte. O lugar onde não temos controle do nosso pensamento, onde a mente fica livre e divagante. “É o homem, na visão [de Sêneca], uma criatura nascida tanto para a contemplação como para a ação – [significaria] essa [ação] um agir em prol da humanidade, e não exatamente [na ação apenas] um produzir, um fabricar coisas materiais[1]”. Mercadorias, guerras e dinheiro, é só o que sabem fazer. Trabalhar para a vida material e de acúmulo é, eminentemente, do universo masculino.
As relações estão racionalizadas com o excesso de objetivação das coisas pautadas pelo desempenho (Byung-ChulHan, em Sociedade do Cansaço). O mal da sociedade contemporânea é empenhar-se a superar-se em tudo.
Faz sentido, cada vez mais, resistir a esta coisificação da vida e a perda da nossa capacidade de desobediência, de contemplação, de não aceitar coisas ditas como são ou como devem ser feitas. “Vivemos em um mundo sem limites, psicanalistas especulando que o homem está cada vez mais sem âncora, sociólogos teorizando que as pessoas se sentem inseguras e infelizes precisamente porque elas parecem ter mais escolhas em suas vidas do que costumavam ter no passado” (Renata Saleci, em Sobre a felicidade). Não sabem o que querem.
Três artistas com desvios sérios dessa normalidade se juntaram há mais ou menos um ano para refletir sobre suas questões artísticas em comum e como consequência desse encontro familiar pensaram a mostra Almofadinhas. Uma exposição que reúne trabalhos desses artistas na Galeria GTO do SESC Palladium, de Belo Horizonte.
Formam essa ‘entidade’ artística o mineiro Rodrigo Mogiz, o carioca Fábio Carvalho e o capixaba Rick Rodrigues. Todos no entorno de uma técnica artística muito usada hoje na arte contemporânea, o bordado. O trio tem essa linguagem como suporte do devaneio estético que dá um novo sentido ao gesto de bordar e, consequentemente, às suas obras.
Junto com o tricô e o crochê, estão ligados à tradição inventada pelo homem, o artesanato. Vem dos costumes antigos, remotos, de se fazer coisas com as mãos. Não se sabe quando ou onde foi inventado. Com certeza depois que inventaram a agulha e a linha. Ou a linha primeiro e depois a agulha. Faz sentido. Daí outro devaneio. Da costura inventaram o bordado, o adorno. Enfeitar, adornar é um desvio da vida prática de resultados que pauta a tal sociedade do desempenho.
Costurar é de utilidade. Bordar, não. É embelezar.
O gesto criativo de bordar sempre esteve ligado a uma prática do universo social e doméstico feminino, de tornar ou imaginar a vida mais bela, mais sossegada e preenchida na sociedade disciplinar, que antecede a do desempenho, segundo Byung-ChulHan. Fazia sentido bordar como disciplina. Hoje não mais.
Fazer o adorno servia como lazer para as mulheres no ambiente doméstico. Preenchiam o tempo ocioso com resultado utilitário. Era motivo de encontros familiares e de amizades, servia para troca de conhecimento, de novos pontos de bordado, conversar, contar histórias ou apenas, flanar. Divagar com o pensamento.
Os homens ficavam de fora dessa atividade contemplativa, silenciosa, delicada, considerada feminina.
Tecer e bordar é antes um costume e cultura que vêm de longa data. A primeira imagem que se faz, geralmente, é a de senhoras tranquilas, serenas, em repouso, com a atenção relaxada. Apenas compenetradas nos pontos e mistura de linhas para tecerem no imaginário as formas e cores no vai e vem da linha trespassada no tecido, levada pela agulha e mãos ágeis.
Uma técnica que conta com a destreza humana de repetir um gesto curto, infinito e introspectivo com lógica e cálculos numéricos para sua elaboração. São artefatos para uso doméstico com fins decorativos. Em algumas culturas tradicionais, é usado como enfeite de roupas festivas e do dia a dia, como nas populações andinas.
Em alguns casos, de extrema beleza, como os bordados coloridos portugueses usados em xales pelas mulheres, os de desenhos sofisticados feitos pelos Shakerse Quakers, nos Estados Unidos da América, e os das muitas regiões do Brasil com suas variações, como os de ponto em cruz, de Japaratuba, cidade sergipana onde o artista Bispo do Rosário nasceu. Assim como os realizados pelo trio de artistas da exposição Almofadinhas.
Ousadia de bordar como forma de fazer arte. Fábio Carvalho, Rodrigo Mogiz e Rick Rodrigues tiveram precursores. O primeiro a ser lembrado são “Os Almofadinhas”, justamente, que inspiram o título da exposição. Grupo de rapazes do final do século XIX e começo do XX que quebraram as convenções sociais da época à contragosto da sociedade.
Homens ‘atrevidos’ quebrando o tabu de que bordar era ou é, coisa só de mulher.
Além desses almofadinhas do século passado, temos três nomes dos mais influentes e recentes conhecidos da arte contemporânea e da moda. Fizeram, do bordado, arte, Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), Zuzu Angel (1921-1976) e Leonilson (1957-1993). Dois expoentes da arte brasileira no século XX e Angel, destaque na moda brasileira, também no século passado. Artistas que influenciam com essa prática gerações inteiras de artistas e estilistas.
Bispo, como a Penélope (a esposa na mitologia grega que ficou a fazer, desfazer e refazer um vestido por anos à espera do marido que foi para a guerra), desfiou as próprias roupas do manicômio onde passou a vida internado. Refez novelos de linha e bordou como obrigação ditas pelas vozes que ouvia, a de registrar sua passagem pelo mundo, museificando objetos do quotidiano e listando nomes de pessoas.
Bordou, costurou e recobriu com linha azul os objetos que compunham o seu museu pessoal com missão e desejo de organizar o caos do mundo. Acumulou na sua cela, na forma de um “tesouro”, sua obra que carregaria por toda vida. Todo esse trabalho para o encontro final com Deus, no Juízo Final. Bordar a palavra foi sua maneira de permanecer no mundo.
Zuzu Angel, estilista carioca, destacou-se na moda e é uma das referências mais importantes que temos da roupa como resistência e manifestação política. Bordou pássaros e anjos negros. Na verdade, bordou a morte do filho assassinado de forma vil pelos militares do golpe de 1964. Não dá para ficar imune ou indiferente ao se deparar com suas roupas. São de uma beleza desesperadora e desconcertante, de mãe que não se resignou com a morte do filho. Queria tê-lo de volta, (Stuart Edgard Angel Jones, 1946-1971). Ela também, mais tarde, foi morta em acidente automobilístico.
Leonilson, como Bispo e a Penélope, foi além do gesto de bordar. O bordado passou a ser sua expressão artística mais visceral, lhe deu plasticidade e força estética. O gesto de bordar, a linha encravada no tecido, costurada e que desenha palavras e formas, dão sentido ao que queria expressar no seu relato íntimo. O tecido passa ser segunda pele do artista. Bordar passa ser forma de suturar feridas abertas pela vida. Como em Bispo, a obra registra sua passagem pela Terra. Como em Zuzu Angel, deixou trabalhos “cicatrizes” como se quisesse fechar as feridas e curar a angústia diante da verdade, da condição humana, além de ter que carregar como em Bispo, o peso de uma doença que o consumiu.
Para Fábio Carvalho, Rick Rodrigues e Rodrigo Mogiz, o bordado permite uma experiência interior estética, tal qual os artistas citados que servem de referência para o gesto silencioso do bordar e de contemplar a si mesmo. Cada um à sua maneira, todos imprimem com o bordado a sua mensagem poética.
Artistas contemporâneos, os ‘almofadinhas’ do título da exposição, se inspiram naqueles homens, os ‘almofadinhas’ do começo do século XX, que resolveram não ficar de fora do gesto de bordar e criaram um concurso na cidade de Petrópolis, nas montanhas do Rio de Janeiro. Concurso que deu o que falar. Até Machado de Assis, jornalista de jornal carioca à época, comentou incomodado com o que viraria moda entre os rapazes.
Certamente para conhecer os melhores entre eles, mais provocaram indignação e chacotas, despertando a ira do preconceito de uma sociedade arcaica nos costumes que nunca chegou a se modernizar. Daí, que ainda hoje não se permite, melhor, se resiste às transformações. Ainda hoje percebemos o estranhamento de termos homens bordando, tricotando, fazendo crochê ou mesmo, ter homens que contemplam a vida, que fazem arte. Não são bem vistos porque a sociedade do desempenho não entende e não vê sentido na Arte Contemporânea.
Os três artistas se juntaram por terem em comum o bordado como meio de expressão. Têm necessidade dessa técnica ancestral de “enfeitar” tecidos. Usam a técnica para expressar visões do mundo e desde que se encontraram influenciam e interferem um no trabalho do outro.
O resultado do que fazem com a técnica, como não poderia deixar de ser, é bonito, tocante e sedutor. Causam impacto pelas cores, pela delicadeza e, claro, quanto mais se aproxima e com atenção redobrada para os trabalhos, descobre-se que não é só de estética que tratam. Surpreendem. Na verdade, causam estranhamento.
Mimetizam a beleza vista nos objetos de pano pois, de fato, leva-se um ‘susto’ quando se descobre o real motivo dos bordados, pois estamos acostumados com o bordado de enfeite. Gênero, sexualidade, memória, família, guerras, violência e os costumes, a ambiguidade de ser sensível na sociedade contemporânea. Todos os temas abordados em seus trabalhos são ainda tabu para a humanidade.
Rodrigo Mogiz nunca fez cursos para aprender a técnica. Com suas narrativas fantásticas feitas sobre camadas de tecidos translúcidos, onde o gesto de bordar parece carregado de dor, cria profundidade em perspectiva para as cenas retratadas.
A agulha perfura o tecido e fere como se quisesse sangrá-lo. Gesto dolorido de bordar como o de Leonilson. Passar a linha, pintar, aplicar alfinetes, deixar o bordado tosco com os resíduos do desenho e escrita, feitos com linha e agulha, sem se preocupar em fazer um bordado perfeito, para tratar do simbólico e expressivo do comportamento das pessoas.
O “mal feito” se mistura a materiais como se quisesse sujar esses desenhos alinhavados sobre tecido. Borra com tinta (pode ser tinta de um batom vermelho), alfineta imagens, aplica rendas e objetos diversos como miçangas e pedrarias para criar matéria sedutora que dá o contorno e volume da obra.
São narrativas visuais e textuais de histórias e estórias que faz, de amor, das relações interpessoais, do sexo, do gênero masculino e feminino e de suas variações. Fabulações da vida contemporânea com suas armas de fogo misturadas a corpos sobrepostos aos mapas. Transforma o bordado em uma constelação de relações e reflexão sobre esta luta de gêneros.
Os artistas subvertem o universo cultural da feminilidade em suas poéticas. Dos três, Fábio Carvalho trabalha com mais evidência os conflitos dos estereótipos da masculinidade, da sexualidade e da violência em seus bordados. Fica entre o forte e o frágil, a delicadeza e a brutalidade.
São estranhos pois, dos três, é o que mais se preocupa com a qualidade do acabamento dos seus ‘artefatos’. Estudou os pontos do bordado em busca de dominar a técnica e a perfeição. Faz bem feito. São atraentes e de colorido até ‘exagerado’, surpreendendo assim pela beleza feminina do gesto e do colorido, e o seu contrário, o sentido violento do contrassenso do universo bruto do macho, a que aludem.
Exemplo dessa natureza dicotômica vista em sua obra, entre o feminino e o masculino, é a série Macho Toys, de 2009 a 2013, em que explora o mundo adulto viril, do trabalho e do território militar com suas armas e soldados (camuflados na instalação Invasão Monarca, de 2016). Tem origem no universo violento do trabalho operário e homens engravatados. Os halterofilistas do universo dos homens fortes, exageradamente musculosos, que vivem insanamente a superar-se.
Subverte o senso comum das coisas, das regras, das convenções. Quebra os códigos sociais da virilidade e da fragilidade, do feminino vulnerável e do masculino dominador. Nos questiona o porquê do não direito de ser sensível do homem.
Rick Rodrigues é puro, talvez o mais Penélope dos três (chega a ser quase pueril o seu gesto de bordar). Na família tem bordadeiras.
Quando se depara em um primeiro instante com seus trabalhos, se observarmos bem, são melancólicos. Não resistiriam ao mundo da possibilidade sem, com a fragilidade do tema e da matéria, a crueza do sentido de ser homem. Trata, também como Rodrigo Mogiz, do homoerótico, do sensual, da violência e do amor. O material que usa são os lenços de padrões temáticos feminino e masculino.
Casa. Foi das primeiras palavras proferidas pelo artista em uma reunião que juntou os três. Casa da família. Casa misteriosa do tio. Casa abrigo. É a casa memória.
Para o ser humano a casa, a ideia de morar, de estar abrigado, protegido, de ter um lugar para se esconder, escapar, fugir do mundo de fora, é o seu bem maior.
Casa é dos bens mais desejados e essenciais do homem. Do homem que vive em comunidade desde os tempos imemoriais em que transformou cavernas em moradias. É um desejo característico do humano. Dos povos mais primitivos aos ditos civilizados, a casa ou a oca, o barraco ou casarão, não importa, têm o mesmo valor simbólico. Ter um lugar para habitar consigo mesmo. É ilusão, é necessidade, é o devaneio de se sentir em porto seguro. Mas o corpo não seria a primeira morada da alma? Não seria a casa a segunda morada do corpo da alma? Os bordados vêm para exposição junto da sua coleção de miniaturas (escadas, mobiliários de casa). Cria um ambiente onírico com os seus trabalhos. O irmão bordava couro e foi quem despertou o seu interesse por bordar. Foi ele quem deu o ensinamento mais simples de como bordar. “Você vai e depois volta”, a regra do bordado “um ponto atrás”.
Contrariamente ao pensamento de Michel Foucault, os artistas aqui não são seres disciplinados, tão pouco conformados e, muito menos, ‘bonzinhos’. Não. Eles subvertem os modos, subvertem a própria criação artística ao fazerem da frugalidade dessa atividade feminina, arte.
“Deus chamou ao sétimo dia de sagrado. Sagrado, portanto, não é o dia do para-isso, mas o dia do não-para, um dia no qual seria possível o uso do inútil” (Byung-ChulHan), do bordado. Um gesto lento e demorado.
Ricardo Resende
Curador
Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
Rio de Janeiro
[1] SENECA. Sobre a Tranquilidade da Alma – Sobre o Ócio. Tradução João Câmara Neiva. Editora Nova Alexandria: São Paulo, 1994. Pág. 8.
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